Direção: Kleber Mendonça Filho
A vida numa rua de classe-média na zona sul do Recife toma um rumo inesperado após a chegada de uma milícia que oferece a paz de espírito da segurança particular. A presença desses homens traz tranqulidade para alguns, e tensão para outros, numa comunidade que parece temer muita coisa. Enquanto isso, Bia, casada e mãe de duas crianças, precisa achar uma maneira de lidar com os latidos constantes do cão de seu vizinho. Uma crônica brasileira, uma reflexão sobre história, violência e barulho.
O som ao redor é um tipo de filme que você já vai ver com bons olhos, depois de ler isso e isso. Deveria ser visto no cinema. Não vi. Uma pena.
Aí ele começa. E nada decepciona.
É uma obra para brasileiro se orgulhar e para aspirantes a cineasta se inspirarem. Um novo cinema, sem o peso de ter que se romper com padrões estéticos, inventar uma nova fórmula ou agradar cineclubes.
Um filme moderno, que utiliza linguagens e referências contemporâneas. Sem o exagero que muitos jovens cineastas têm usado, resultando em algo excessivamente pop e forçado. E sem o saudosismo e clichês que outros tantos usam, que não conseguem se libertar do passado e ousar colocar os dois pés no presente.
O som ao redor possui uma maturidade até surpreendente. Ratifica a identidade que o cinema pernambucano há alguns anos vem criando, tal como os filmes gaúchos assim o fizeram a partir, sobretudo, do final da década de 1990, impulsionados pela Casa de Cinema de Porto Alegre. Tão bom ouvir o sotaque, as gírias e as representações condizentes com o lugar filmado. E o filme de Kleber Mendonça Filho tem essa marca. Mas de uma forma tão natural, tão natural, que nem parece ficção.
A naturalidade das cenas e dos personagens é tão grande, que a sensação é de que tudo foi filmado no improviso, em uma única e irreversível filmagem. As seqüências também respeitam o tempo de cada coisa, como quando os seguranças vão pela primeira vez à casa de seu Francisco e esperam na cozinha para ser recebido. Os personagens esperam. O espectador também. Os personagens pensam “bora logo” e se incomodam com a demora. O espectador também.
Reproduzir no espectador o que pensa e sente o personagem em determinada cena não é coisa fácil, sendo digno de se tirar o chapéu. Outra cena que talvez resuma a “pegada” do filme e corrobora com essa minha impressão sobre ele é a da reunião de condomínio. Em um determinado momento o morador gringo pergunta para o síndico “e quanto ficaria”? Pronto. Essa cena traduz tudo. O morador pergunta. O síndico não entende o que ele quis dizer. Há um silêncio provocado pela falha na comunicação. A câmera espera. O morador refaz a pergunta. O síndico entende e responde. Uma cena simples, boba, que passa despercebida, mas que simboliza toda a naturalidade do filme e que alimenta a tese de que o diretor reuniu os atores e falou “Bem, é uma reunião de condomínio e a pauta é essa. Vão improvisando, enquanto eu vou filmando”. Qual técnica utilizada por Kleber, eu não sei, preferi não pesquisar antes de escrever esse texto. Mas que deu certo, deu.
Os detalhes cotidianos também foram captados com extrema sensibilidade. O PM que compra um cd pirata; o garoto que grita “joga a boooola”; o coronel que se dirige ao segurança branco e ignora o segurança negro – afinal de contas, o chefe “só pode ser” o branco.
Essa naturalidade foi essencial para não se fazer um filme caricata, tal como Domésticas, do nobre Fernando Meirelles. Sem falar no conteúdo, nas representações sociais. Daí, outra sacada. O comum é “falar” de pobres para falar de pobres. O som ao redor “fala” de ricos para falar de pobres. Porque onde tem pobre não necessariamente tem rico. Mas onde tem rico, sempre haverá pobres. Na cozinha, guardando o carro, na segurança, na portaria. E nesse universo, tão próximo da gente, tudo faz sentido. E as coisas simplesmente vão acontecendo. Sem maniqueísmo, sem a tradicional “crítica social”. Como em Short Cuts. Só que “melhor”. Porque é nosso. Não porque foi feito aqui. Mas, porque foi feito com nossos vizinhos, nosso porteiro, com o cachorro da casa ao lado. E com nós mesmos.
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