2 de Fevereiro de 2014. Yemanjá. Final de festa. Lá pelas tantas da noite, por um acaso, pego o celular. Tinham 7 ligações perdidas e uma mensagem de um amigo: “Eduardo Coutinho foi assassinado! Pelo filho! Barril!!”.
Eu não sei o que me deixou mais perplexo, se foi a forma brutal de sua morte ou se foi a sua morte. Eduardo Coutinho é uma daquelas pessoas que não morrem nunca. E como poderia estar morto? Como poderia ter sido dessa forma?
Eu só fui “conhecer” Coutinho no final da faculdade. Me encantei. Meu TCC foi sobre ele. Analisei Edifício Master e Babilônia 2000 a partir de uma perspectiva cinematográfica e da comunicação comunitária. Acho que nos 6 meses de TCC/Coutinho eu aprendi mais do que nos 6 anos de faculdade. O profissional que eu sou hoje tem Coutinho como premissa e norte. O ser humano que eu sou, também.
Passei 6 anos no curso de Comunicação. Tive ótimos professores. Mas foi com Coutinho, com Socorro e com Tânia, que eu aprendi algo que eu levo para a vida toda: comunicar não é só falar, comunicar é, sobretudo, ouvir. É dialogar. Parece extremamente simples, mas não é.
Ouvir o outro. Se responsabilizar pelo outro. Deixar o outro ser exatamente aquilo que ele quer ser. Entender que nós e o outro somos produto do presente. Que o que fazemos hoje, agora, nesse exato instante, não nos define nem nos rotula. Simplesmente somos e podemos ser a qualquer momento.
A ficção, a verdade, a mentira. Não há brasileiro algum que tenha agregado tantos elementos ao cinema-documentário como Coutinho. O cara era tão foda, que ele se desafiava e resinificava tudo aquilo que ela acabara de fazer. Quando você achava que ele tinha alcançado o ápice do experimento estético, ele aparecia com algo inovador.
É inacreditável que uma pessoa como Coutinho morra.
Existem algumas poucas pessoas que me iluminam. Coutinho é um deles e para sempre será. Eu, como Ser Humano e Comunicólogo, tento sempre abandonar meus pressupostos, descer do meu pedestal, relativizar minhas certezas e enxergar o outro como único. Saber que eu sou só mais um. E que o outro é algo que eu nem imagino, por mais rótulos que ele possua e mais inivisibilizado que ele seja. Mas, paradoxalmente, saber que cada um de nós é capaz de influenciar irreversivelmente a vida do outro. Como Coutinho fez comigo e, certamente, com as centenas de personagens com quem ele se conectou ao longo de suas obras.
Não teremos mais Coutinho para nos ensinar algo novo. Nos resta fazer o melhor possível com o que aprendemos.
No primeiro parágrafo do prefácio do livro “O Documentário de Eduardo Coutinho: televisão, cinema e vídeo”, de Consuelo Lins, há uma boa definição sobre Coutinho: “Num pequeno livro de entrevistas intitulado O único e o singular, o pensador Paul Ricoeur responde assim a uma pergunta sobre o sentido da responsabilidade: “Onde há poder, há fragilidade. E onde há fragilidade, há responsabilidade. Eu diria que o objeto da responsabilidade é o frágil, o perecível que nos solicita. Porque o frágil está, de algum modo, confiado à nossa guarda. Entregue ao nosso cuidado.” Esta é uma boa síntese da obra de Eduardo Coutinho.”
Há alguns anos, participei de um concurso de crítica, analisando Jogo de Cena. E foi justamente a relação de poder utilizada por Coutinho que eu destaquei. É incrível como a cada filme ele abdicava de sua confortável posição poderosa, de alguém que tem um status e uma câmera na mão, apontada para a cabeça do outro. Seu exercício era de horizontalizar cada vez mais a relação com seus personagens filmados e se tornar cada vez menos dono de seus próprios filmes.
Esse exercício também alcançava algo que é sua marca: a ética. A ética de Coutinho é tanta que se confunde na própria estética de seus filmes. Sua ética é a sua própria estética. Uma não existiria sem a outra.
Saber lidar com o poder. Enxergar o outro como protagonista. É por isso que Coutinho, suas obras, sua ética e seu senso de responsabilidade são premissas fundamentais para quem quer ser policial, professor, comunicólogo, presidente da república ou cineasta. O outro. Essa é a verdadeira revolução. E nenhum cineasta alcançou o outro tão bem quanto Coutinho.
“Eu estou interessado em conhecer, não posso transformar o mundo com um filme, já sei disso há mais de 20 anos. Se pudéssemos transformar o mundo com um filme, não sei se eu seria capaz de fazer esse filme. Temos de ter dados sensíveis, e os filmes podem dar esses dados. Se você não conhece não pode transformar direito”.
Que Yemanjá acalente sua alma. E que os brasileiros não o deixem cair no esquecimento.
“Tudo isso depende da saúde física, da saúde moral, da vontade, enfim, tudo é sempre contingente, tudo é uma possibilidade. Se fosse daqui a um mês... Mas daqui a seis meses, eu não sei o que isso pode significar, e é nessa coisa duvidosa que a gente vive. Só sei que será um filme sem pesquisa e em um universo distante, o que torna a filmagem mais irreversível. Ou dá certo ou não dá...”
*Pacote de torrent com a filmografia quase completa de Eduardo Coutinho:
O homem que comprou o mundo (1968)
Faustão (1971)
Seis dias de Ouricuri (1976)
Teodorico, o imperador do sertão (1978)
Cabra marcado para morrer (1984)
O fio da memória (1991)
Boca de lixo (1993)
Santo forte (1999)
Babilônia, 2000 (1999)
Edifício Master (2002)
Peões (2004)
O fim e o princípio (2005)
Jogo de Cena (2007)
Moscou (2009)
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